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Integridade Pública: Lições do Graciliano Ramos Prefeito há um século para a atualidade

  • Foto do escritor: Pernambuco Transparente
    Pernambuco Transparente
  • 23 de fev.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 30 de mar.

Um prefeito que virou escritor deixou lições que poderiam servir para os prefeitos até hoje. Quem nunca ouviu falar no escritor alagoano Graciliano Ramos? Famoso e consagrado por seus vários títulos como Caetés, São Bernardo, Vidas Secas, Memórias do Cárcere e tantos outros que o tornaram mundialmente conhecido. Poucos sabem, contudo, que ele desabrochou esse talento após seus Relatórios de Gestão serem publicados pela imprensa e caírem nas mãos do poeta e editor Augusto Schmidt, que ficou maravilhado e incentivou o talento literário de Graciliano. Um colosso agora, ao alcance de todos: em “O Prefeito Escritor: Dois retratos de uma administração”, Graciliano Ramos revela sua futura grandeza literária como prefeito de Palmeira dos Índios, onde liderou uma administração exemplar, combatendo o desperdício e a ineficiência. Seus relatórios de 1929 e 1930, finalmente reunidos em uma publicação especial, destacam o compromisso do alagoano com a integridade e a melhoria da vida dos cidadãos.




Em uma época, como a atual, que órgãos públicos em geral e até tribunais (de justiça e de contas) do país avançam na adoção do uso de uma linguagem simples compreensível a maior parte da população, revisitar os relatórios administrativos de Graciliano são de uma coincidência ímpar – afinal, com aguçado senso de humor, o ex-prefeito foi curto na sua passagem pela administração pública, mas deixou um legado eterno de como a simplicidade é mesmo coisa de grandes almas e profissionais, ao transgredir os formatos oficiais. Afinal, sobre o seu próprio modo de retratar a realidade em seus escritos, como defendia, a palavra por si não ‘brilha’, só cumpre sua missão se significados são bem transmitidos: ‘foi feita para dizer’ (no vídeo acima, minuto 6).


"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. (...) Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa; a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer".

Igualmente, nos tempos recentes, após o vigor da Lei Anticorrupção (12.846/13), passou a ganhar terreno a implementação de ‘códigos de conduta’ como instrumentos relevantes de 'políticas de integridade' no setor público e igualmente das empresas, que na ocorrência de investigações por irregularidades, poderão ter suas penas reduzidas em casos de aplicação adequada de mecanismos de ética preventivos. Há uma década a lei permite a punição de pessoas jurídicas que pratiquem atos de corrupção envolvendo funcionários públicos brasileiros ou estrangeiros, e veio suprir uma lacuna no ordenamento jurídico nacional que anteriormente permitia apenas a punição das pessoas físicas responsáveis pela prática de atos de corrupção - ativa ou passiva - como regulados no Código Penal.


E não é que o Graciliano também foi um pioneiro nesse assunto? Há quem ache que quatro anos (o tempo de um mandato) é muito pouco e passa rapidinho para discutir e tentar implementar um. Pois o prefeito-escritor 'causou geral' em Palmeira dos Índios com o tal do Código que implantou com uma impessoalidade implacável: multou até o próprio pai (‘prefeito não tem pai, pode lavrar a multa!’ e ainda demitiu uma irmã que não tinha capacidade para exercer o magistério junto com uma grande leva de outros funcionários com perfil semelhante), deixando bem claro, mais uma vez, que a ‘república graciliana’ era para todos.


(inserir citação sobre a perda de amigos e plebiscito)


Em 2019, o Programa 'MPC em Foco' conversou com o escritor, professor e procurador do Estado de Alagoas, Fábio Lins de Lessa Carvalho, autor do livro ‘Graciliano Ramos e a Administração Pública - Comentários aos seus relatórios de gestão à luz do Direito Administrativo moderno’ (Editora Fórum), no qual o servidor comenta a magnitude da postura de Graciliano em realizar prestações de contas sobre sua administração em um período em que ainda não havia tal obrigatoriedade. Um pioneiro, portanto, na defesa de que a transparência é fundamental e perpassa todas as práticas administrativas. A íntegra pode ser conferida adiante:




Entenda o Contexto Histórico


Em 1920, era de ouro do famoso ‘coronelismo’, enraizado pela tradição patrimonialista do país até então, Graciliano sacou de toda sua ousadia e boas e refinadas doses de deboche, para um enfrentamento nunca dantes visto pelas bandas de tantos cabrões. Sem machismos (muito menos pistola, provavelmente), mas muita força de caráter e mentalidade, botou pra torar ("As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento"). (inserir citação sobre os múltiplos prefeitos que encontrou ao assumir o cargo).


E, enquanto em pleno 2024, às voltas com a Reforma Tributária, sem parlamentares com o mesmo espírito do escritor, que negaram a cobrança de tributos aos mais ricos, mais uma prova de quanto realmente chacoalhou sem paralelo as estruturas arcaicas brasileiras: inserir trecho sobre cobrança de impostos”.


Os mais cínicos certamente desagradam-se com uma trajetória assim, mas, de qualquer forma, esse gestor tão à frente de seu tempo (ainda à frente) não aguentou muito – se ainda hoje a cultura administrativa que permeia instituições sem infraestrutura de toda sorte é a realidade, imagine há quase 100 anos. Por mais esforçado que fosse, Graciliano, que chegou a sofrer um atentado à bala, reconhecia a ingratidão por todos os lugares, e com uma ironia suprema, chega ao ponto de refletir que diante de tanta baixeza, seria um belo momento capaz de jurar que ele mesmo não tocou qualquer obra”.


Em uma fase pós-pandêmica, parece interessante a preocupação com a higiene da cidade (destacada até na instauração de um banheiro de uso público e reparos no matadouro), mas não deve passar gratuita para o leitor: aos que se embrenharam na biografia do autor, não é difícil saber o motivo – Graciliano perdeu três irmãos cedo (todos em único dia), justamente para a peste bubônica que assolou o Rio de Janeiro em 1915. Foi essa perda avassaladora, inclusive, que levou o então jornalista ao nordeste novamente, e em particular, à Palmeira dos Índios, na qual seu pai tinha um pequeno negócio e onde havia crescido.


O aquecimento global hoje enlouquece quem vive seu cotidiano nas ruas, mas Graciliano destacou o quão desagradável era a falta de arborização da cidade naqueles tempos - embora esse registro tenha sido encontrado em outros documentos, foi descoberto em outra obra recente, ‘Garranchos’ (com trechos lidos a partir do minuto 6 no vídeo abaixo).




Ele é, aliás, tido como o autor brasileiro que levou ao limite o clima de tensão das relações ser humano/meio natural, ser humano/meio social: tensão essa geradora de um conflito tão intenso, que seria capaz de moldar personalidades e de transfigurar o que as pessoas têm de bom. A aridez e a dureza da existência, o realismo e a crítica social, afinal, permeiam quase todos os seus textos. Cabe destacar que ele reforçava que ‘só se pode escrever sobre aquilo que se conhece’ – ainda que obras fictícias, todos os seus livros são narrados em compromisso com realidades bastante conhecidas ao longo de vários deslocamentos familiares (mesmo 'Vida Secas', que retrata Buíque, em Pernambuco).

Viagens familiares de Graciliano Ramos: PE e AL
Mapa infográfico com registros conhecidos de mudanças do escritor por AL e PE


O nobre autor, que terminou sua vida como inspetor de ensino público, em sua passagem meteórica como prefeito (de apenas dois anos, menor que um ciclo tradicional dos políticos que aguardam o último para qualquer entrega significativa), Graciliano fez história. Foi um escritor que viveu mergulhado nos acontecimentos mais significativos da realidade brasileira da primeira metade do século 20 - e os viveu intensamente, numa participação direta e abrangente. Ele, que foi preso duas vezes, 'soltava os detentos para construírem estradas' (conforme autodescrição). Foi mal visto por ser rigoroso com relação à distribuição de merenda escolar e de uniformes e mais: permitir a matrícula de crianças pobres em escolas de bairros de gente rica.


Lições valiosas e atuais, considerando que em 2025, a constrangedora prática do nepotismo permanece uma realidade na máquina pública: um levantamento do jornal “O Globo” mostra que prefeitos colocaram parentes no comando de secretarias em 29 dos 154 municípios com mais de 200 mil habitantes, ou seja, 1 a cada 5 prefeitos dessas grandes cidades (confira reportagem). Na região nordeste, apurações do Diário de Pernambuco e Diário do Nordeste (ocorrências no Ceará) apuraram nomeações semelhantes. Pelo menos 51 prefeitos e prefeitas de Pernambuco nomearam seus próprios cônjuges para ocupar o cargo de secretário municipal (proporção de 1 a cada 4): em 22 cidades, o que representa a maior parcela, o(a)s companheiro(a)s do gestor foram escolhidos para pastas relacionadas à Assistência Social.


O levantamento pernambucano evidencia a pasta que mais é alvo dessa prática (Assistência Social) - somada à de Secretaria de Governo (articulação). Este ano, por exemplo, o Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) emitiu uma recomendação à Prefeitura de São Miguel para exoneração da chefe de gabinete do prefeito - o que não livre outras pastas, como ilustram casos noticiados no Piauí. Ano após ano, denúncias são efetuadas pelos MPs estaduais, mas, o distanciamento da má conduta, que poderia cessá-la sem a necessidade de qualquer vexame, passa ao largo de muitos representantes dos interesses públicos. Por isso, relembrar as escolhas e o legado de Graciliano é algo que vale a pena contar e recontar. Quem sabe um dia não deixem de ser apenas boas lembranças e não lições?

 

*Texto por Raquel Lins. Cientista Política (UFPE), possui especialização em Planejamento e Gestão Pública (UPE) e MBA em Auditoria e Inovação no Setor Público pela FEA-USP/IRB. Criadora do Pernambuco Transparente e Nordeste Transparente.



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