Integridade Pública: Lições de um século do Prefeito Graciliano Ramos para o presente
- Pernambuco Transparente
- 23 de jun.
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Atualizado: 26 de jun.
Um prefeito que virou escritor deixou lições que poderiam servir para os governantes até hoje. Quem nunca ouviu falar no alagoano Graciliano Ramos? Famoso e consagrado por seus vários títulos como Caetés, São Bernardo, Vidas Secas, Memórias do Cárcere e tantas outras obras que o tornaram mundialmente conhecido, seu nome é homenageado pelo Portal de Transparência de Alagoas. Poucos sabem, contudo, que ele despontou esse talento após seus 'Relatórios de Gestão' serem publicados pela imprensa e caírem nas mãos do poeta e editor Augusto Schmidt, que ficou maravilhado e incentivou o talento literário de Graciliano.
Um colosso agora ao alcance de todos, em “O Prefeito Escritor: Dois Retratos de Uma Administração”, Graciliano Ramos revela em poucas páginas sua futura grandeza literária como prefeito de Palmeira dos Índios, onde liderou uma administração exemplar, combatendo o desperdício e a ineficiência. Seus relatórios de 1929 e 1930, direcionados ao Conselho Municipal da cidade e ao Governo do Estado, e originalmente publicados no Diário Oficial do Estado de Alagoas, foram finalmente reunidos em um livro especial, evidenciando o seu compromisso inigualável com a integridade pública e a melhoria da vida dos cidadãos.
Repleto de bom humor, a leitura do volume tão pequeno pode ser concluída em apenas algumas horas, sendo extremamente prazerosa e até divertida em algumas passagens. Como salienta a referente aos valores elevados e os maus serviços prestados pela companhia de luz, uma empresa privada contratada pelo prefeito anterior:
"Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo [o contrato] às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá".
Na atualidade, atravessamos uma fase na qual órgãos públicos em geral e até tribunais (de justiça e de contas) do país avançam na adoção padronizada de uma linguagem simples compreensível a maior parte da população. Por isso, poder revisitar os relatórios administrativos de Graciliano são de uma coincidência ímpar – afinal, com seu aguçado senso de humor, o ex-prefeito foi curto na sua passagem pela administração pública, mas deixou uma inspiração eterna de como a simplicidade é mesmo coisa de grandes profissionais, ao transgredir os formatos oficiais. Sobre o seu próprio modo de traduzir a realidade em seus escritos, como defendia, 'a palavra por si não ‘brilha’, só cumpre sua missão se significados são bem transmitidos: ‘foi feita para dizer’ (no vídeo acima, minuto 6).
"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. (...) Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa; a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer".
Nos tempos recentes, ademais, após o vigor da Lei Anticorrupção (12.846/13) ganhou terreno a implementação de ‘códigos de conduta’ como instrumentos relevantes de 'políticas de integridade' no setor público e igualmente nas empresas, que diante da ocorrência de investigações por irregularidades, poderão ter suas penas reduzidas em casos de aplicação adequada de mecanismos de ética preventivos. Há mais de uma década, pois, a lei permite a punição de pessoas jurídicas que pratiquem atos lesivos envolvendo funcionários públicos brasileiros ou estrangeiros, e veio suprir uma lacuna no ordenamento jurídico nacional que anteriormente delimitava apenas a sanção das pessoas físicas responsáveis pela prática de atos de corrupção - ativa ou passiva - como regulados no Código Penal.
E não é que o Graciliano também foi um pioneiro nesse assunto? Há quem ache que quatro anos (o tempo de um mandato) é muito pouco e passa rapidinho para discutir e tentar efetivar um. Pois o prefeito-escritor 'causou geral' em Palmeira dos Índios com o tal do Código que implantou com uma impessoalidade implacável: multou até o próprio pai (‘prefeito não tem pai, pode lavrar a multa!’ e ainda demitiu uma irmã que não tinha capacidade técnica para exercer o magistério junto com uma grande leva de outros funcionários com perfil semelhante), deixando bem claro, mais uma vez, que a ‘república graciliana’ seria universal.
"(...) há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento da ideia de lucro pessoal (...). Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1: 325$500 de multas. Não favoreci ninguém. (...) Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade."
Acima de tudo, a magnitude da postura de Graciliano ao realizar prestações de contas sobre sua administração em um período em que ainda não havia tal obrigatoriedade foi esclarecida em 2019, pelo o Programa 'MPC em Foco' que entrevistou o escritor, professor e procurador do Estado de Alagoas, Fábio Lins de Lessa Carvalho, autor do livro ‘Graciliano Ramos e a Administração Pública - Comentários aos seus relatórios de gestão à luz do Direito Administrativo moderno’ (Editora Fórum). Graciliano, um intelectual com aguda consciência social e um profunda retidão legitimou-se um precursor, portanto, na defesa de que a transparência é fundamental e perpassa todas as práticas administrativas. A íntegra pode ser conferida adiante:
Entenda o Contexto Histórico
Ao assumir a prefeitura de Palmeira dos Índios, em 1928, Graciliano Ramos deparou-se com um contexto histórico e social profundamente desafiador, que moldaria não apenas sua gestão, mas também sua obra literária. O Brasil vivia o período da Primeira República, com suas estruturas oligárquicas e o forte domínio dos coronéis no Nordeste. Palmeira dos Índios, como muitas cidades do interior, era um microcosmo dessas mazelas: a população enfrentava a miséria endêmica, a seca implacável, o analfabetismo generalizado e a falta de saneamento básico. As finanças municipais eram precárias, o nepotismo e a corrupção eram práticas comuns, e o clientelismo político arraigado impedia o desenvolvimento e a justiça social.
Assim, foi em plena década de 1920, auge do famigerado ‘coronelismo’, enraizado pela tradição patrimonialista do país até então, que Graciliano sacou de toda sua ousadia e refinadas doses de deboche para um enfrentamento nunca antes visto pelas bandas de tantos cabrões. Sem machismos (muito menos pistolas), mas muita fibra moral e de mentalidade ("As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento"). Como inicia seu Relatório de 1929 no trecho 'Começos':
"Havia em Palmeira dos Índios inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam."
Enfatiza-se a perspectiva que em 2024, às voltas com a Reforma Tributária, o Congresso Nacional, sem parlamentares com o mesmo espírito do escritor, votou contra a cobrança de tributos aos mais ricos, notória em suas palavras por sua incapacidade de solidariedade ou unidade ao tecido social "cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros". Aqui, oportunizou-se mais uma prova de quanto realmente chacoalhou sem paralelo as estruturas arcaicas brasileiras:
"Não há listas dos devedores da municipalidade: a cobrança das contas atrasadas é impossível. De resto o contribuinte, que se desempenha bem para com a repartição estadual e a federal, está habituado a pagar à Prefeitura se quer, como quer e quando quer. Isto se explica pelo fato de sermos todos, prefeitos, conselheiros e contribuintes, mais ou menos compadres."
Os mais cínicos certamente desagradam-se com uma trajetória assim, mas, de qualquer forma, esse gestor tão à frente de seu tempo (ainda à frente) não aguentou muito – se, mesmo hoje, a realidade da cultura administrativa que permeia uma parcela das instituições públicas locais é de ausência de infraestrutura de toda sorte, imagine há quase 100 anos. Por mais esforçado que fosse, Graciliano, que chegou a sofrer um atentado à bala, reconhecia a ingratidão por todos os lugares, e com uma ironia suprema, refletiu que diante de tanta baixeza, "seria em um belo momento capaz de jurar que ele mesmo não tocou qualquer obra".
Em uma conjuntura pós-pandêmica, parece interessante a preocupação com a higiene da cidade (realçada na inauguração de um banheiro de uso público e reparos no matadouro), mas não deve passar gratuita para o leitor: aos que se embrenharam na biografia, não é difícil saber o motivo – Graciliano perdeu três irmãos cedo (todos em único dia), justamente para a peste bubônica que assolou o Rio de Janeiro em 1915. Foi essa perda avassaladora, inclusive, que trouxe o então jornalista à Região novamente, e em particular, à Palmeira dos Índios, na qual seu pai tinha um pequeno negócio e onde havia crescido. Primeiro de dezesseis irmãos de uma família de classe média do sertão, ele viveu os primeiros anos em diversas cidades do Nordeste brasileiro.
O aquecimento global da era contemporânea enlouquece quem vive seu cotidiano nas ruas, mas Graciliano alertou sobre o quão desagradável era a carência de arborização da cidade já naqueles tempos - embora esse registro tenha sido encontrado em outros documentos, foi descoberto em outra obra recente, ‘Garranchos’ (com trechos lidos a partir do minuto 6 no vídeo abaixo).
Ele é, aliás, tido como o autor brasileiro que levou ao limite o clima de tensão das relações ser humano/meio natural, ser humano/meio social: tensão essa geradora de um conflito tão intenso, que seria capaz de moldar personalidades e de transfigurar o que as pessoas têm de bom. A aridez e a dureza da existência, o realismo e a crítica social, enfim, permeiam quase todos os seus textos. Cabe destacar seu reforço que ‘só se pode escrever sobre aquilo que se conhece’ – ainda que obras fictícias, todos os seus livros são narrados em confluência com realidades bastante conhecidas ao longo de múltiplos deslocamentos familiares (mesmo 'Vida Secas', que retratou Buíque, em Pernambuco).

O nobre autor, que terminou sua vida como inspetor de ensino público, em sua passagem meteórica como prefeito (de apenas dois anos, menor que um ciclo tradicional dos políticos que aguardam o último para qualquer entrega expressiva), fez história. Foi um escritor que viveu mergulhado nos acontecimentos mais marcantes da realidade brasileira da primeira metade do século 20 - e os viveu intensamente, numa participação direta e abrangente. Ele, que foi preso político duas vezes, 'soltava os detentos para construírem estradas' (conforme autodescrição). Foi mal visto por ser rigoroso em relação à distribuição de merenda escolar e de uniformes e mais: permitir a matrícula de crianças pobres em escolas de bairros de gente rica.
![[Referência Centenária em Moralidade Pública: Graciliano Ramos batiza o Portal de Transparência Estadual e possui Estátua em plena Orla de Maceió, capital de Alagoas]](https://static.wixstatic.com/media/6291a9_08237c1428514b328450abd41b3ff264~mv2.jpg/v1/fill/w_750,h_498,al_c,q_85,enc_avif,quality_auto/6291a9_08237c1428514b328450abd41b3ff264~mv2.jpg)
O legado de Graciliano oferece lições valiosas e bem atuais, considerando que em 2025, a constrangedora prática do nepotismo permanece uma realidade na máquina pública: um levantamento do jornal “O Globo” mostra que prefeitos colocaram parentes no comando de secretarias em 29 dos 154 municípios com mais de 200 mil habitantes, ou seja, 1 a cada 5 prefeitos dessas grandes cidades (confira reportagem). Na região nordeste, apurações do Diário de Pernambuco e Diário do Nordeste (ocorrências no Ceará) identificaram nomeações semelhantes. Pelo menos 51 prefeitos e prefeitas de Pernambuco intitularam seus cônjuges para ocupar o cargo de secretário municipal (proporção de 1 a cada 4): em 22 cidades, o que simboliza a maior parcela, o(a)s companheiro(a)s do gestor foram escolhidos para pastas relacionadas à Assistência Social.
O levantamento pernambucano sinaliza a pasta que mais é alvo dessa prática (Assistência Social), somada à de Secretaria de Governo (articulação). Este ano, por exemplo, o Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) emitiu uma recomendação à Prefeitura de São Miguel para exoneração da chefe de gabinete do prefeito - o que não livra outras pastas, como ilustram casos noticiados no Piauí. Logo, ano após ano, denúncias são efetuadas pelos MPs estaduais, mas, o distanciamento da má conduta, que poderia cessá-la sem a necessidade de qualquer vexame, passa ao largo de muitos representantes dos interesses públicos. Por tal razão, relembrar as escolhas e a herança de Graciliano é algo que vale a pena contar e recontar. Quem sabe um dia, com o empenho coletivo, não deixem de ser apenas boas lembranças e não lições?

*Texto por Raquel Lins. Criadora do Nordeste Transparente, é Bacharel em Ciência Política com ênfase em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Pernambuco (2013). É especialista em Planejamento e Gestão Pública pela Universidade de Pernambuco (2016) e possui MBA em Auditoria e Inovação no Setor Público pela FEA-USP/IRB (2024). Atua em temas relacionados à promoção da transparência e integridade governamental, governo aberto, controle e inovação em políticas públicas - tendo desenvolvido experiência prática ao longo de uma década através da criação do projeto pioneiro Pernambuco Transparente em 2018, visando estimular a compreensão do assunto pela sociedade, e como um de seus resultados, lançado o portal Dados Abertos Pernambuco, plataforma com amplo acervo didático sobre o universo da abertura de dados e reconhecida com voto de aplauso pela Câmara Municipal do Recife.
[+ Currículo Lattes]

Os ensinamentos de Graciliano Ramos para os prefeitos | Matéria do Jornal da Band:
Relatórios inspiraram livro baseado em tese de doutorado em Comunicação Social da Prof(a). Sônia Jaconi:
Mini-Documentário do coletivo 'Passarim de Palco':
Marcos da Biografia de Graciliano:
'Garranchos' e a defesa da educação pública:
O Brasil de 1930 a 1945 e a relação com os temas e obras de Graciliano Ramos:
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